Memória

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Ano de cursinho. Uma dureza medonha, com o dinheiro contado apenas para a sobrevivência, e morando em uma pensão na rua Augusta, em São Paulo. Vivia como todo estudante: liso, barba por fazer e cabelo por cortar. Um João felpudo, como dizia minha mãe.

Meu colega de pensão e cursinho tinha um Fusca, o que me garantia a carona diária de ida e volta de casa para a escola. Em compensação, todo sábado meu amigo e eu tínhamos que lavar o carrinho. Lavávamos como os lavadores de estacionamento o faziam: com um balde cheio de água e um pano. Na primeira passagem do pano encharcado, tirávamos o pó preto e grosso da lataria e o torcíamos dentro do balde, deixando a água da cor do asfalto: preta. Na segunda passada, já com a água trocada a coisa ficava mais clara um pouco, e assim por diante, até o final da limpeza, quando apenas passávamos a flanela para o brilho.

Num desses sábados, o Paulão, um grandalhão muito simpático e simplório, que trabalhava numa indústria química, apenas olhava o nosso trabalho. Ele era de Ribeirão Preto, bem mais velho que a gente e fazia parte da turma dos pensionistas. Tínhamos uma grande amizade. De repente, não sei de onde surgiu a conversa, o Paulão disse que não tinha nojo de absolutamente nada. Ato contínuo, eu o desafiei a tomar um gole da água do balde, do primeiro, aquele mais preto possível. Já que ele era tão valente, que tomasse um gole, e eu lhe daria quinhentos cruzeiros. Na época era um valor altíssimo, nós sabíamos, mas aí ele disse que por essa quantia, tomaria mais que um gole. E para a minha surpresa, tomou um copo cheio, quase transbordando. Falei então, como era de se esperar, que esperasse uns dias e eu o pagaria… Nem é preciso dizer que nas condições que eu vivia, nem me passava pela cabeça pagá-lo.

O tempo passou, eu me formei, mudei de São Paulo e a história nunca mais me passou pela cabeça.

Vinte anos depois de formado, fui até Ribeirão Preto levar meu filho que precisava prestar um exame da língua inglesa, pois este havia voltado do Canadá onde havia ficado um ano e precisava do tal exame para alguma finalidade a qual não me lembro hoje. Enquanto eu o esperava no carro, me lembrei do Paulão. Pela sua idade achei que ele deveria ter voltado para sua cidade natal, e procurei seu endereço numa lista telefônica. Achei, e após o término do exame, fui com meu filho visitar o Paulão.

Chegando á sua casa sua esposa nos falou que ele estava no bar vizinho, tomando um café. Dirigimo-nos até o local e, de longe o reconheci. Chegamos até ele, bati em suas costas já fazendo festa. De forma decepcionante para mim, meu amigo não me reconheceu. Estava bem calvo e usava óculos com lentes e aro grossos. Falei tudo o que podia para lembrá-lo quem era eu. Ele se recordava de tudo, menos de mim.

Não tinha jeito. De repente, num flash, me lembrei da aposta e falei da água suja. Sua expressão mudou e então, esboçando um grande sorriso, quase gritou: – ¨Baixinho, você me deve quinhentas pratas!¨ Fez-se a luz.

Conversamos por bastante tempo, e no momento de despedir-me, falei que agora fazia questão de pagar a aposta perdida, pois reconhecia que assim deveria ser . Negou receber absolutamente um centavo que fosse. – ¨Meu amigo, como é que irei me lembrar de você se daqui uns vinte anos você me aparece na frente como hoje, assim de repente? Nem pensar em receber nada. Quero ter o gostinho de poder cobrá-lo sempre!¨

Nunca mais nos vimos, continuo devendo a ele “com prazer”, mas me lembro sempre de toda turma da pensão com muita saudade e carinho.